quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Mister Lonely


I have nobody...except my monkey
Lembra-se daquela música chatinha chatinha do Akon, aquele rapzinho que no refrão os ratinhos cantavam “Lonely, i´m mr. Lonely, i have nobody only  my own...ouuuuuu uu”, pois, é ela, cantada originalmente por seu compositor, Bobby Vinton, que dá o título e tom literalmente da mais recente produção do Harmony Korine: Mister Lonely.

Roteirista do aclamado Kids  e diretor de Gummo, Julien Donkey Boy, Korine me remete a palavra desconstrução. Em Gummo, histórias fatiadas sobre cotidianos burlescos e bizarros nos chocam desde o primeiro momento (nunca vou esquecer da cena da banheira...) criando um filtro automático que separa quem irá ou não ver os créditos subindo. Vale a experiência. Já em Ken Park, cenas demasiadamente grosseiras e apelativas sexualmente comprometeram o já tão fraco roteiro, de sua autoria, se constituindo em um retorno fracassado da dobradinha com Larry Clark (direção) outrora tão surpreendente conforme visto em Kids. Da sua filmografia, Mister Lonely aparenta ser o mais linear e acessível por utilizar uma linguagem e temática atual de maneira satisfatória, porém sem ofender visualmente o espectador como nas produções anteriores.

Um imitador preciso de Michael Jackson (Diego Luna) vive em Paris fazendo apresentações na rua e em asilos para idosos. Numa dessas encenações conhece uma mulher que personifica Marilyn Monroe (Samantha Morton) que o convida irresistivelmente a ir com ela para uma comunidade onde “todos são importantes e famosos”. Lá ela é casada com o imitador de Charles Chaplin (Denis Lavant) e tem como filha Shirley Temple (Esme Creed-Miles) além de conviver com pessoas que personificam Abe Lincon (richard Strange), Madonna (Melita Morgam), o Papa (James Fox), Os Três Patetas, James Dean (Joseph Morgam), Buckwheat (Michael Joe), Sammy Davis Jr (Jason Pennycook), Rainha Elizabeth II (Anita Pallenberg) e, porquê não, Chapeuzinho Vermelho (Rachel Korine).


Paralela a esta realidade já tão inédita, acompanharemos também, no desenrolar da trama, a história de um grupo de freiras que vivem calmamente trabalhando pela caridade no Panamá sob a tutela de um padre, até que um dia são surpreendidas por um milagre quando em uma missão onde alimentos são despejados de um avião, uma delas cai de uma altura absurda, porém sobrevive ilesa ao impacto.

De fato o que se percebe claramente em todo o tempo do filme é a sombra do monólogo inicial do então sósia de Michael Jackson, na inesquecível cena de abertura, quando ele aparece pilotando uma mini moto, com óculos e mascara, tal qual o ídolo, puxando um balão de macaco com um sorriso congelado. Sua fala “Não sei se você sabe o que é querer ser outra pessoa" seguida de reflexões sobre sua escolha  e seus sentimentos é tristemente arrepiante e já deixa claro, desde o princípio, o universo incomum que sobrepõe a vida do outro a sua própria, condicionando a sua existência a um  retrato desfigurado que induz uma imagem de quem se admira que tragicamente pode, inclusive, nem ser a real.

Todas as pessoas que personificam no filme vivenciam personalidades conhecidas mundialmente, garantindo "sucesso" na sua escolha em viver como alguém que é notado ao tempo que renega sua própria figura, incorporando uma máscara e indumentária representativa que lhe garante segurança e firmeza para levar uma vida sem sentido. Não há nestas pessoas a construção de uma realidade comum, mesmo que fantasiada, como é a das pessoas ordinárias, há sim uma busca desesperada em trazer sentido a sua existência através da existência de outra pessoa a quem se admire. Por isso o espanto quando Michael e Marilyn se questionam sobre quando sentiram pela primeira vez quem se tornariam e a resposta é “desde que nasci” e “desde que senti seus seios”, respectivamente, revelando sua transfiguração e dissociação da figura refletida nos espelho desde a fase onde deveriam estar fortalecendo suas personas.

 
A solidão dessas pessoas é tão presente quanto a sua ausência de perspectivas. Não existem sonhos particulares. Almejar ser um profissional competente, uma boa mãe, um bom marido, ter uma casa, uma viagem especial...não...essas pessoas estão tristemente se realizando em ser caricaturas grotescas de personalidades cujo objetivo de vida é apenas “serem famosos”, amados e especiais. No entanto, mesmo que sutilmente percebemos que esta carapuça é apenas externa, e por mais que haja um esforço em estabelecer uma compatibilidade comportamental e mental com as estrelas, os personificadores deixam escapar seus traços individuais de personalidade... seja através de um Michael apaixonado e sonhador, de uma Marilyn fiel apesar de descontente e triste, de um Papa obsceno ou de uma Madonna sentimentalista. Afinal, onde mais veríamos o Papa consumindo maconha após uma relação sexual com a Rainha Elisabeth II? Ou ainda Marilyn Monroe casar-se com Chaplin e ser mãe de  Shirley Temple? Redes que se estabelecem mesmo que invisivelmente e edificadas apartadas do desejo inicial de cada um dentro do propósito de ser outra pessoa.

Além da loucura de ver atores interpretando personagens que interpretam pessoas reais, Mister Lonely nos encanta pelas belíssimas paisagens e cenas marcantes, principalmente as de queda livre das freiras voadoras, feitas com tamanho zelo que ficamos procurando algum sinal de marca do pára-quedas encobertas sob as roupas, mas a vestimenta azul, tal qual o céu infinito, se torna mágica e é impossível não se sentir por alguns instantes como um observador presente na cena, graças ao quase silêncio celestial rompido apenas pelo som seco do ar, pelo atrito dos corpos, tornando-nos parte daquele “milagre” primeiramente único e posteriormente coletivo.

E é com o final trágico dessa história paralela que entendemos a fatalidade presente no fechamento da trama central. Um milagre deixa de acontecer quando passa a ser imputado a nós ao invés de ser manifestado por nós. Ter uma casca que não se ajusta as nossas evoluções e se remodele de acordo com nosso amadurecimento torna-se desprezível e descartável a medida que os acontecimentos transcendem a vida morta que é viver a vida de outrem. A forma como lidamos com nossas conquistas, nossos encantamentos, estranhamentos e perdas é belamente particular, própria, singular. São esses sentimentos que nos ligam verdadeiramente a nossa essência e ao entrar em contato com elas não existe roteiro a ser seguido...daí o sentido claro em o personagem de Diego Luna optar pelo seu novo caminho, o comum mais especial que ele já viveu: sua própria vida.

Trailer:

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